Este texto de Mia Couto – de seu verdadeiro nome António Emílio Leite Couto, é um dos
mais conhecidos, se não o mais conhecido dos escritores moçambicanos – intitulado
“Perguntas à Língua Portuguesa”, apesar de ter alguns anitos (é de 1997 ou 1998)
parece-me apropriado num momento em que tanto se discute o tal do acordo
ortográfico.
"Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram.
"Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram.
Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar
o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.
A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é
A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é
o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo.
Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida.
E quantas são? Se a Vida tem é idimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como
escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. Meu anjo-da-guarda, felizmente,
nunca me guardou.
Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia.
Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia.
Nós estamos simplesmente ocupados a sermos.
Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica. Ora qual é a nossa elegância?
Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé?
Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações.
Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência
de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio.
No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias.
No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias.
Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que
dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a
gramáticas.
Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas.
Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas.
Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo,
um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?
Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros
Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros
tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém
sabe as certezas delas? Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:
Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?
No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?
A diferença entre um ás no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?
O mato desconhecido é que é o anonimato?
O pequeno viaduto é um abreviaduto?
Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente.
Quem vive numa encruzilhada é um encruzilhéu?
Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?
Tristeza do boi vem de ele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação.
Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?
No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?
A diferença entre um ás no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?
O mato desconhecido é que é o anonimato?
O pequeno viaduto é um abreviaduto?
Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente.
Quem vive numa encruzilhada é um encruzilhéu?
Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?
Tristeza do boi vem de ele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação.
Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?
O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?
Onde se esgotou a água se deve dizer: «aquabou»?
Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um
O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?
Onde se esgotou a água se deve dizer: «aquabou»?
Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um
desmarço?
Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?
Mulher desdentada pode usar fio dental?
A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?
As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: «finanças»?
Um tufão pequeno: um tufinho?
O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?
Em águas doces alguém se pode salpicar?
Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?
Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?
Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?
Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?
Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina.
Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?
Mulher desdentada pode usar fio dental?
A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?
As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: «finanças»?
Um tufão pequeno: um tufinho?
O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?
Em águas doces alguém se pode salpicar?
Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?
Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?
Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?
Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?
Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina.
Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia.
Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós.
Colocámos essoutro português - o nosso português - na travessia dos matos,
fizemos com que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.
Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas - o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente."
Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas - o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente."
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